POETAS DEVEM
ESCREVER A VERDADE
Qual é a missão do poeta nos dias de hoje?
A essa pergunta tenho apenas a resposta. O poeta
deve escrever a verdade. Mas quando pronuncio essa frase, vejo pessoas
levantarem suas cabeças de certos livros, menearem um furtivo sim e continuarem
lendo, e esses livros não foram de modo algum escritos por poetas que escrevem
a verdade. Que essas pessoas concordem com a minha frase é porque é difícil
dizer algo contra ela; que depois continuem lendo seus livros ruins é porque
não entenderam a frase. A frase, acredito, coloca os poetas diante de três
grandes dificuldades. Elas estão ligadas umas às outras, mas quero tratá-las
separadamente. O mais evidente é que o poeta deva escrever a verdade no sentido
de que ele não deve suprimir ou omiti-la e que ele não deve escrever
inverdades. Ele não deve curvar-se aos poderosos, não deve ludibriar os fracos.
É claro que é muito difícil não se curvar aos poderosos, e muito vantajoso
ludibriar os fracos. Renunciar ao pagamento pelo trabalho realizado significa,
em determinadas circunstâncias, renunciar ao trabalho, e renunciar à
consideração dos poderosos significa, muitas vezes, renunciar simplesmente à
consideração. No entanto, quando se diz que o poeta deve fazer isso, os
ouvintes acenam como se alguém tivesse dito uma coisa evidente! Curiosamente, a
segunda dificuldade é menos evidente. Está, por assim dizer, completamente
encoberta pela primeira. Essa é a dificuldade de se encontrar a verdade. Em
primeiro lugar, não é fácil descobrir qual é a verdade que vale a pena ser dita.
Assim, por exemplo, agora um dos grandes Estados civilizados afunda, após o
outro, aos olhos do mundo inteiro, na mais extrema barbárie. Além disso, todos
sabem que a guerra interior, travada pelos meios mais terríveis, pode se
transformar num dia qualquer numa guerra exterior que pode deixar a nossa parte
do mundo como um monte de escombros. Isso é, sem dúvida, uma verdade, mas é
claro há mais verdades. Por exemplo, não é falso que as cadeiras tenham
assentos e que a chuva caia de cima para baixo. Muitos Poetas escrevem verdades
desse tipo. São como pintores que cobrem com naturezas mortas as paredes de
navios que estão afundando. Nossa primeira dificuldade não existe para eles, e
ainda assim eles têm uma consciência limpa. Inabaláveis ante os poderosos, mas
também ante os gritos dos violados, pincelam suas pinturas. O absurdo de suas
ações gera neles mesmo um pessimismo "profundo", que vendem a bons
preços e que seria antes justificável em outros, diante desses mestres e dessas
vendas. E nem ao menos é fácil perceber que suas verdades são essas sobre
cadeiras ou chuva, elas como de hábito soam completamente diferente, muito mais
atuais. Somente numa inspeção mais acurada percebe-se que elas apenas dizem:
uma cadeira é uma cadeira e ninguém pode fazer nada contra o fato de a chuva
cair.
Essas pessoas não encontram a verdade que valha a
pena ser escrita. Alguns, por outro lado, se ocupam realmente das tarefas mais
urgentes, não temem os poderosos e a pobreza, mas ainda assim não conseguem
encontrar a verdade. Não são capazes de descrever as coisas de tal forma que se
manejáveis. A verdade deles não é praticável. Assim também não estão à altura
da frase: o poeta deve escrever a verdade.
Há pessoas que estão à altura dela? A resposta
deve ser: toda vez, em cada trabalho e, em maior ou menor grau, isso precisa se
mostrar. É necessário, além da atitude, conhecimentos adquiríveis e métodos
apreensíveis. Para não ficar demasiado geral, parece-me necessário que todos os
que escrevem tenham um conhecimento da dialética materialista e de economia e
história. Ele pode ser adquirido a partir de livros e através de instrução
prática, se a diligência necessária. Se alguém o "tiver" através da
inspiração – nada contra. Mencionei o método mais alto e mais abrangente, mas pode-se
descobrir muitas verdades de uma maneira mais simples, partes da verdade, ou
fatos que levam a encontrar a verdade. Quando se deseja pesquisar, um método é
bom, mas também se pode encontrar sem um método, e até mesmo sem pesquisar.
Quando alguém está pronto para escrever a verdade
e é capaz de reconhecê-la, a terceira dificuldade permanece. Através dos
hábitos centenários de negociar com escritos no mercado de opiniões e
descrições, através do qual se aliviou quem escreve do cuidado com o escrito, quem
escreve ficou com a impressão de que seu cliente ou contratante, o
intermediário, passava o escrito para todos. Ele pensou: "Eu falo e
aqueles que querem ouvir me ouvem". Na realidade, ele falava e aqueles que
podiam pagar o ouviam. A sua fala não foi ouvida por todas e aqueles que a
ouviram não queriam ouvir tudo. Sobre isso tem-se dito muito, ainda que muito
pouco, ou só quero frisar aqui que "da escrita de alguém formou-se uma
"escrita". Mas a verdade não pode ser meramente escrita; ela deve ser
escrita para alguém. Deve ser escrita para alguém que possa fazer algo com ela.
O conhecimento da verdade é um processo comum a escritores e leitores. Para se
dizer coisas boas, é preciso saber ouvir bem e ouvir o bem.
A verdade deve ser dita com astúcia e ouvida com
astúcia. E, para nós que escrevemos, é importante para quem a dizemos e quem a
diz para nós. A grande verdade do nosso tempo (com o conhecimento da qual ainda
não se serviu, mas sem o conhecimento da qual nenhuma outra verdade de
interesse pode ser encontrada) é que nosso continente está afundando na
barbárie, porque a propriedade dos meios de produção é mantida pela força.
Escrever essa verdade é difícil, reconhecê-la é difícil, encontrar e alcançar
aqueles que podem fazer algo com ela é difícil. De que serve escrever algo que
mostre que a situação na qual estamos afundando é bárbara (o que é verdade), se
não está claro por que caímos nessa situação? Precisamos dizer que se tortura
porque a propriedade deve permanecer. Claro que, quando dizemos isso, perdemos
muitos amigos que são contra a tortura porque acreditam que a propriedade pode
ser mantida sem tortura (o que é falso). Temos também de dizê-lo àqueles que
mais sofrem com as relações de propriedade, que estão mais interessados na sua
modificação, os trabalhadores e aqueles que podemos lhes trazer como aliados,
porque na realidade eles não têm nenhuma propriedade dos meios de produção,
ainda que participem dos lucros. Isso é o tanto que se exige quando se exige
que o escritor deva escrever a verdade.
[1934]
Bertolt Brecht (1898-1956)
Trad.: André Vallias
múltiplas poéticas poesia em movimento palavras e mais palavras ao sabor do vento
sábado, 10 de fevereiro de 2024
poetas devem escrever a verdade
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