sábado, 10 de fevereiro de 2024

poetas devem escrever a verdade

POETAS DEVEM ESCREVER A VERDADE

Qual é a missão do poeta nos dias de hoje?

A essa pergunta tenho apenas a resposta. O poeta deve escrever a verdade. Mas quando pronuncio essa frase, vejo pessoas levantarem suas cabeças de certos livros, menearem um furtivo sim e continuarem lendo, e esses livros não foram de modo algum escritos por poetas que escrevem a verdade. Que essas pessoas concordem com a minha frase é porque é difícil dizer algo contra ela; que depois continuem lendo seus livros ruins é porque não entenderam a frase. A frase, acredito, coloca os poetas diante de três grandes dificuldades. Elas estão ligadas umas às outras, mas quero tratá-las separadamente. O mais evidente é que o poeta deva escrever a verdade no sentido de que ele não deve suprimir ou omiti-la e que ele não deve escrever inverdades. Ele não deve curvar-se aos poderosos, não deve ludibriar os fracos. É claro que é muito difícil não se curvar aos poderosos, e muito vantajoso ludibriar os fracos. Renunciar ao pagamento pelo trabalho realizado significa, em determinadas circunstâncias, renunciar ao trabalho, e renunciar à consideração dos poderosos significa, muitas vezes, renunciar simplesmente à consideração. No entanto, quando se diz que o poeta deve fazer isso, os ouvintes acenam como se alguém tivesse dito uma coisa evidente! Curiosamente, a segunda dificuldade é menos evidente. Está, por assim dizer, completamente encoberta pela primeira. Essa é a dificuldade de se encontrar a verdade. Em primeiro lugar, não é fácil descobrir qual é a verdade que vale a pena ser dita. Assim, por exemplo, agora um dos grandes Estados civilizados afunda, após o outro, aos olhos do mundo inteiro, na mais extrema barbárie. Além disso, todos sabem que a guerra interior, travada pelos meios mais terríveis, pode se transformar num dia qualquer numa guerra exterior que pode deixar a nossa parte do mundo como um monte de escombros. Isso é, sem dúvida, uma verdade, mas é claro há mais verdades. Por exemplo, não é falso que as cadeiras tenham assentos e que a chuva caia de cima para baixo. Muitos Poetas escrevem verdades desse tipo. São como pintores que cobrem com naturezas mortas as paredes de navios que estão afundando. Nossa primeira dificuldade não existe para eles, e ainda assim eles têm uma consciência limpa. Inabaláveis ante os poderosos, mas também ante os gritos dos violados, pincelam suas pinturas. O absurdo de suas ações gera neles mesmo um pessimismo "profundo", que vendem a bons preços e que seria antes justificável em outros, diante desses mestres e dessas vendas. E nem ao menos é fácil perceber que suas verdades são essas sobre cadeiras ou chuva, elas como de hábito soam completamente diferente, muito mais atuais. Somente numa inspeção mais acurada percebe-se que elas apenas dizem: uma cadeira é uma cadeira e ninguém pode fazer nada contra o fato de a chuva cair.

Essas pessoas não encontram a verdade que valha a pena ser escrita. Alguns, por outro lado, se ocupam realmente das tarefas mais urgentes, não temem os poderosos e a pobreza, mas ainda assim não conseguem encontrar a verdade. Não são capazes de descrever as coisas de tal forma que se manejáveis. A verdade deles não é praticável. Assim também não estão à altura da frase: o poeta deve escrever a verdade.

Há pessoas que estão à altura dela? A resposta deve ser: toda vez, em cada trabalho e, em maior ou menor grau, isso precisa se mostrar. É necessário, além da atitude, conhecimentos adquiríveis e métodos apreensíveis. Para não ficar demasiado geral, parece-me necessário que todos os que escrevem tenham um conhecimento da dialética materialista e de economia e história. Ele pode ser adquirido a partir de livros e através de instrução prática, se a diligência necessária. Se alguém o "tiver" através da inspiração – nada contra. Mencionei o método mais alto e mais abrangente, mas pode-se descobrir muitas verdades de uma maneira mais simples, partes da verdade, ou fatos que levam a encontrar a verdade. Quando se deseja pesquisar, um método é bom, mas também se pode encontrar sem um método, e até mesmo sem pesquisar.

Quando alguém está pronto para escrever a verdade e é capaz de reconhecê-la, a terceira dificuldade permanece. Através dos hábitos centenários de negociar com escritos no mercado de opiniões e descrições, através do qual se aliviou quem escreve do cuidado com o escrito, quem escreve ficou com a impressão de que seu cliente ou contratante, o intermediário, passava o escrito para todos. Ele pensou: "Eu falo e aqueles que querem ouvir me ouvem". Na realidade, ele falava e aqueles que podiam pagar o ouviam. A sua fala não foi ouvida por todas e aqueles que a ouviram não queriam ouvir tudo. Sobre isso tem-se dito muito, ainda que muito pouco, ou só quero frisar aqui que "da escrita de alguém formou-se uma "escrita". Mas a verdade não pode ser meramente escrita; ela deve ser escrita para alguém. Deve ser escrita para alguém que possa fazer algo com ela. O conhecimento da verdade é um processo comum a escritores e leitores. Para se dizer coisas boas, é preciso saber ouvir bem e ouvir o bem.

A verdade deve ser dita com astúcia e ouvida com astúcia. E, para nós que escrevemos, é importante para quem a dizemos e quem a diz para nós. A grande verdade do nosso tempo (com o conhecimento da qual ainda não se serviu, mas sem o conhecimento da qual nenhuma outra verdade de interesse pode ser encontrada) é que nosso continente está afundando na barbárie, porque a propriedade dos meios de produção é mantida pela força. Escrever essa verdade é difícil, reconhecê-la é difícil, encontrar e alcançar aqueles que podem fazer algo com ela é difícil. De que serve escrever algo que mostre que a situação na qual estamos afundando é bárbara (o que é verdade), se não está claro por que caímos nessa situação? Precisamos dizer que se tortura porque a propriedade deve permanecer. Claro que, quando dizemos isso, perdemos muitos amigos que são contra a tortura porque acreditam que a propriedade pode ser mantida sem tortura (o que é falso). Temos também de dizê-lo àqueles que mais sofrem com as relações de propriedade, que estão mais interessados na sua modificação, os trabalhadores e aqueles que podemos lhes trazer como aliados, porque na realidade eles não têm nenhuma propriedade dos meios de produção, ainda que participem dos lucros. Isso é o tanto que se exige quando se exige que o escritor deva escrever a verdade.

[1934]

Bertolt Brecht (1898-1956)
Trad.: André Vallias 


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