segunda-feira, 15 de abril de 2024

múltiplas poéticas


Algo sobre céu

 

Pousam nas xícaras da noite passada

borboletas da Índia, tons de corais.

Sobre a borra de café, aroma salino

e profundo do Índico.

 

Asas transparentes, projetam azuis

no banco silencioso e frio da parede

como se fosse primavera.

 

Telas de anjos e outras divindades

(dessas que não lembramos de onde vem)

como se vivas, vertiam lágrimas

intactas pétalas de flores

bordando o tapete da sala

da mais pura igualdade e paz.

 

Nas borras do café da noite passada

abriu-se cristalino, o destino

nas asas das borboletas da Índia

no cheiro de incenso de mirra.

 

E todo ser fez-se um pedaço do Divino

pausa no tempo,  no acorde menino

por instantes, o brinde do vinho

e tudo em volta fez-se céu

e tudo em volta, céu

profundamente céu.

 

Tonho França

Do livro Quarto de Azulejos

Editora Penalux - 2014



Cantarias


“Mesmo as cigarras se tornaram raras.

Ouvir alguma que estrile é um soco no peito.”


eugênio montale

[Trad. Geraldo H. Cavalcanti]

 

Cantaria I


Caímos ante as pérolas insanas –

ocultando a centelha

que acende as cinzas.


Caímos insólitos

sobre nós, com as proteínas

vencidas e as certezas

provisórias.

Quem aspergiu o florescer

de estiletes –

e o símio que errou

a porta de Deus?


Daqui,

desta ilha de presságios,

também as pedras

                     se reinventam.


Daqui, deste azul

que tropeça nas aves,

digito a alma em 3-d

encerrado ao córtex verbal

em que me reverbero:

 seguindo enquanto espero.


Salgado Maranhão

Pedra de Encantaria

Editora 7Letras – 2021


           alguma poesia 

 não.

não bastaria a poesia deste bonde
que despenca lua nos meus cílios
num trapézio de pingentes onde a lapa
carregada de pivetes nos seus arcos
ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.
 

não.

não bastaria a poesia cristalina
se rasgando o corpo estão muitas meninas
tentando a sorte em cada porta de metrô
e nós poetas desvendando palavrinhas
vamos dançando uma vertigem
no tal circo voador.
 

não.

não bastaria todo riso pelas praças
nem o amor que os pombos tecem pelos milhos
com os pardais despedaçando nas vidraças
e as mulheres cuidando dos seus filhos.
  

não.

não bastaria delirar Copacabana
e esta coisa de sal que não me engana
a lua na carne navalhando um charme gay
e uma cheiro de fêmea no ar devorador

aparentando realismo hiper/moderno,
num corpo de anjo

que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno
como provar do amor no posto seis
numa cósmica e profana poesia
entre as pedras e o mar do Arpoador
mistura de feitiço e fantasia
em altas ondas de mistérios que são vossos
  

não.

não bastaria toda poesia

que eu trago em minha alma um tanto porca,

este postal com uma imagem meio Lorca:
um bondinho aterrisando lá na Urca
e esta cidade deitando água
em meus destroços
pois se o cristo redentor  deixasse a pedra
na certa nunca mais rezaria padre-nossos
e na certa só faria poesia com os meus ossos.

 

Artur Gomes

Couro Cru & Carne Viva – 1987

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https://arturgomesgumes.blogspot.com/ 

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