sábado, 31 de agosto de 2024

A Poesia Liberada de Artur Gomes

 entre os lençóis

 

o outubro 
me deixou no tudo nada 
a luz branca sem sono
em nossos corpos de abandono

ela arquitetava uma nesga
entre as frestas da janela
luz do luar nos olhos dela
girassóis em desmantelos
por entre poros entre pelos
minhas unhas tuas costas 
Amsterdã nos teus cabelos 

o que Van Gog me trazia
era branca noite de outono
que amanheceu sem ver o dia 
nossos corpos estavam banhados
                    de vinho tinto e poesia

 

Artur Gomes

Do livro O Poeta Enquanto Coisa

Editora Litteralux – 2024

nova tiragem em breve

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A poesia liberada de Artur Gomes

                         Por Uilcon Pereira

 

Há uma passagem, em Auto do Frade, de João Cabral, que me chamou a atenção:

“- Fazem-no calar porque, certo, sua fala traz grande perigo.

- Dizem que ele é perigoso mesmo falando em frutas e passarinhos”.

Vislumbro aí  uma espécie de definição do alto poder da poesia, do poeta, da arte em geral: deixar fluir uma energia de protesto e indignação, crítica e iluminação da existência, qualquer que seja o pretexto ou o ponto de partida.

Por exemplo -: Suor & Cio, novo poemário de Artur Gomes. Na sua primeira parte (Tecidos sobre a Terra), lemos um testemunho direto sobre as misérias e sofrimentos na região de Campos dos Goytacazes, interior fluminense. Não se canta amorosamente as lavouras de cana e grandes usinas, os aceiros e céus de anil. Ao contrário. Ouvimos uma fala que “traz grande perigo”, efetivamente, ao denunciar – com aspereza e às vezes até com extremo rancor – a situação histórico-social,  bruta e feroz, selvagem e primitiva, da exploração do homem no contexto do latifúndio e da monocultura.

 

“usina mói a cana

o caldo  e o bagaço

usina mói o braço

a carne o ossso.”

 

Mas essa poesia dura, cortante e aguda, mantém igualmente a sua força de transgressão – continua revolucionária e perigosa – mesmo quando tematiza (principalmente em Tecidos sobre a Pele, segunda parte do livro) as frutas, ou o prazer sexual, os seios, o carnaval, o mar, e os impulsos eróticos. Por detrás dos elementos bucólicos e paradisíacos (só nas aparências, bem entendido), eis que explode o censurado o reprimido, o que não tem vergonha e nem nunca terá:

 

“arando o vale das coxas

com o caule da minha espada

no pomar das tuas pernas

eu planto a língua molhada”.

 

Por isso, frequentemente os poemas se debruçam sobre o próprio ofício do poeta, e sobre o próprio sentido do fazer artístico. Ofício de artista, experiência de poeta: presença do risco da violação das normas injustas: carnavalizando, desbundando a troup-sex, infernizando o céu santificando a boca do inferno, denunciando o rufo dos chicotes, opondo-se aos d nos da vida, que controlam o saldo, o lucro e o tesão.

Os versos de Artur Gomes querem ser lidos, declamados, afixados em cartazes, desenhados em camisas. E vieram para ficar nas memória e bibliotecas da nossa gente, apesar do suor e do cios, graças ao suor e ao cio:

 

“com um prazer de fera

e um punhal de amante”.

 

Uilcon Pereira

São Paulo, julho de 1985

leia mais no blog 

https://fulinaimacentrodearte.blogspot.com/


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