domingo, 14 de abril de 2024

múltiplas poéticas

injúria secreta 2

o meu amor
não é um bicho
mas é um pássaro
afogado no lixo

Gigi Mocidade
foto: Artur Gomes
https://porradalirica.blogspot.com/
 


 dueto


o vento zomba da carne
espanca a pele e a anca
rasga à navalha a pelanca
o vento zumbe na cara
e esbraveja no ouvido
esfarrapa à farpa a entranha
vento e ventre a grunhir
vazando a víscera vazia
a fome e a noite fria

Carolina Rieger
DE TEMER A MORTE
CARAVANA - Belo Horizonte - 2022


Aleppo

I
Havia sim um elo entre todos
Que não fossem de raça, credo ou origem
Respiravam o mesmo ar pesado de morte
Respiravam na dança macabra da fuligem
Sob botinas de couro e borracha o chão parecia de nuvem
Fumaça para todos os lados entre corpos marcados, anjos perdidos
Povos sem lar, sem rumo e sem norte
Dos restos da casa, o homem fardado fazia a guarda
Boneca de pano no canto dos móveis marcados, quebrados, perdidos
Um dia ali dentro crianças brincavam de polícia e bandido
Os tempos mudaram, não havia inocência ou vida talvez
Um som estremece a cidade, os sobreviventes entendem que começou tudo outra vez
Um quadro mal pendurado revela a família que um dia foi feliz
Agora, despedaçada, mantém em seu seio quem escapou por um triz
Nas ruas resta o concreto estraçalhado e o pó que subiu
Das bombas que ali atingiram, a beleza e a vida, o tudo sumiu
Na praça central da cidade cachorros vadios não existem mais
A vida, o sopro e a brisa, a paz e o futuro ficaram pra trás
Nas ruas, ruínas e gente sem esperança
Nas casas espalhavam-se corpos, velhos, adultos e crianças
O som que se escuta na trégua é o silêncio quebrado pelo choro baixinho
Carregado de dor e descaso, de morte e abandono, sem paz, sem carinho.
A bela cidade florida deu lugar ao inferno sem nem avisar
Famílias inteiras em trapos, tentando fugir pra outro lugar
Em barcos de ar e esperança encontram a morte nas margens do mar.

II

– Vês? Nada resta!
Chora a menina, olhando na fresta
Vestido de bolinhas rasgado nas mangas
Dois passos pra fora, vem a escuridão
Um soldado armado caminha ileso
Sem um arranhão
Do lado de dentro não há nem telhado
Se ainda houvesse chuva, tudo estaria molhado
Mas até a chuva se refugiou em outras bandas
O prédio é ruína, nem lembra o passado
A praça perdida fica lá do outro lado
Não há mais crianças pra brincar de castelo de areia
Celebra um homem com um bote inflável de contrabando
Exibe o peito aberto, caminha mancando
Seu rosto encontra o chão antes do corpo encontrar a porta
No lugar das pipas, os meninos contam mísseis
Eles sabem que a queda encerra dias difíceis
Já não há mais vagas no cemitério
À noite, cansada, a criança não conta mais carneirinhos
Conta estouros, bombas, barulhos de bala
E dorme sem saber se vai acordar outra vez
Um estampido à curta distância e o pai corre pro berço
A criança ainda respira, sem marcas ou feridas
Ajoelhado, ele fala baixinho – eu agradeço
Ela levanta os bracinhos pra se render
Nem sabe bem o que significa
Mas sabe que ainda pode morrer

III

Já houve tempo de paz, há muito esquecida
Pessoas como eu e você, vagando em ruas em ruínas
Sua vida, sua história, perspectiva perdida
Um corte na alma, o corpo exibe a ferida
Já houve, no passado, alegria e progresso
Do futuro brilhante, restou o regresso
À selvageria, ao ódio e ao caos
Em tempos de guerra, o ódio é réu confesso
O barulho das bombas interrompe o silêncio
Da terra arrasada desprovida de sorte
Nas ruas, ruínas não contam histórias
Nas manchas de sangue, um rastro de morte
Passado é o tempo de um dia feliz
Crianças cresciam em paz e união
Na guerra o ódio não se contradiz
Nas ruas e esquinas a marca profunda da destruição
No campo de guerra não tem aliado
Tem homens buscando alimento e proteção
Família escondida, futuro dilacerado
A vida e a esperança sem rumo caindo ao chão
Os canteiros floridos dão lugar aos cartuchos de balas
As escolas tomadas de poeira e vazio
Não há mais ensino nas salas de aulas
Acordam sabendo que a vida está por um fio

IV

Um dia, quem sabe, tudo volta ao normal
Terá se passado uma era talvez
A vida findada tal qual vendaval
O barulho da bomba revela tudo outra vez
A esperança veste luto onde um dia foi vida
Vida? Não restam mais dúvidas da história perdida!
Logram vitória como se fosse possível
O sangue escorrido do povo invisível
Família, o que sobra, vira refugiada
Em terra estranha porque a sua foi arrasada

V

Bum
O zumbido no ouvido deixa marca profunda
Bum
A mãe pega o filho e se esconde no quarto
Bum
A parede desaba com um novo impacto
Bum
Entre tijolos encontram a mão da criança
Bum
Não nascem mais flores em nenhum jardim
Bum
A vida, entre balas, chegou ao fim

VI

Era eu apenas uma garotinha
Cabelos ao vento, vestido de bolinha
Nas ruas da cidade, traçava meu trajeto
Da escola à minha casa não era traço reto
Cruzava ruas e avenidas
Todo mundo trabalhava, cuidava de sua vida
Eu gostava de aventuras, no mercado me escondia
Vivíamos tempos doce, de paz à noite, vida ao dia
Até que a guerra a nós chegou
Pouca gente entende ao certo como tudo começou
Bala e bomba toda hora
Ajoelhada, a mãe à vida implora
Sob o pó pela bomba levantado
Jaz o corpo de mais um pobre-coitado
Fardado, o menino não entende
Todo o ódio que à arma agora o prende
Acordamos todo dia sem saber pra onde ir
Papai um dia disse que a nós resta fugir
Mas quem somos nós nesse mundo sem fim?
A história aniquila a esperança e termina assim
Depois de muito tempo, nos unimos aos conterrâneos
Fugimos de barco e encontramos a morte no Mediterrâneo

VII

Ela chora baixinho ao lado do corpo da mãe
O pai foi pra guerra e ela sabe que ele não volta mais
O irmão soterrado não pede socorro
Sozinha no quarto espera o milagre que não virá
O zumbido no céu e a esperança
“Será essa a bomba que vai me matar?”
Nos sonhos inocentes tem um jardim pra brincar
Pela janela só restam ruínas, a vida parou
Não há mais futuro, o país acabou
Sai solitária com a boneca na mão
O tiro, perdido, acerta o coração
Ela, enfim, encontra a paz

VIII

As lápides sem nomes fazem fila
Nem todo mundo será encontrado
Nem mesmo inocentes terão funeral
A guerra não mata apenas vidas
Mas aniquila dignidades
Histórias interrompidas por pura maldade
A guerra há de acabar por falta de gente para matar

*Aleppo é a segunda maior cidade da Síria. Já considerada uma das cidades mais bonitas do mundo, foi completamente destruída na guerra.

Sobre a Autora
Maya Falks começou a escrever muito cedo, aos 3 anos ditava histórias pra minha mãe. Aos 24 escreveu seu primeiro romance adulto, que veio a ser publicado 8 anos depois. Nessa mesma idade, ganhou seu primeiro prêmio. Atualmente tem 4 livros publicados, diversos projetos em andamento e 21 prêmios entre contos, crônicas e poesias. Maya Falks é graduada em publicidade e propaganda, especialista em marketing e graduanda de jornalismo. Atua profissionalmente com redação publicitária e roteiro. O poema
“Aleppo” integra o conjunto de textos do livro Poemas Para Ler No Front.



somos todos pornográficos

 

teu corpo

é carne de manga

em meu pênis viril

enquanto sangra

quando beijo tu boca

enfurecido

rasgando por trás

o teu vestido 


EuGênio Mallarmè 

https://personasarturianas.blogspot.com/


 jura secreta 101


tem dias que o amor
é incêndio
arde queima devora

tem dias que é só
mansidão calmaria
             como agora

Artur Gomes Fulinaíma
leia mais em
https://braziliricapereira.blogspot.com/


antropofagia

esse poema é um tratado
entre o poeta que tem fome de clareza
e sua musa simbolismo de beleza

se eu não beber teus olhos
não serei eu nem mais ninguém
disse o poeta a sua musa ainda esfinge

beber na fonte dos seus olhos
sem medo de ser feliz

ela completa
não quero poema em linha reta
ainda sou clarice/beatriz
             é ela quem me diz

mas eu não sou discreto
no abstrato do concreto
no concreto do abstrato

todo homem que tem fome
abapuru é o teu auto-retrato

Artur Gomes Gomes
Itabapoana Pedra Pássaro Poema
https://porradalirica.blogspot.com

MAR ABERTO

 

Naquele dia

em que você me puxou

pelo braço

com força

para cima

eu já não respirava.

 

Michaela v. Schmaedel

dia de sol

de chuva

aqui dentro

já não sei

a previsão

é sempre incerta

mudança

é a única certeza

que me cabe

 

Renata Magliano

Trinta e Cinco Pausas

https://www.instagram.com/re.magliano/

PRONOME

 

crianças correm descalças

escorre seiva ainda

calçadas desertas

e inquietas

ruas incertas e tortas

lua antes ungida

ora proibida

ora pro nobis

sem nome choram

sem normas coram

carolas frígidas

até que o dia clareie

até que a noite a lua leve

até amanhã, talvez

 

Marcelo Brettas

In florestas imaginárias 


despautério de torquália

 

nada demais

se o muro é pintado de verde

não sei se ainda quero ver-te

neste país do carnaval

 

lírico demais

se os planos são enganos

para mim tanto faz

as perdas e os danos

 

eu sou como sou: vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim

 

se o poeta é um anjo torto

a tarde já nos traz

o corpo de um outro morto

 

agora não se fala mais

toda palavra é uma cilada

o início pode ser o fim

do começo que não deu em nada

 

eu sou como sou: vidente

e vivo tranquilamente

todas as horas do fim

 

nada de  mais

se quiserem roer o osso

já não estou nem aí

como geleia até o pescoço

 

nada de mais

se a palavra é precipício

o que fica tanto faz

a poesia já não corre risco

 

Herbert Valente de Oliveira

leia mais no blog

https://fulinaimacarnavalhagumes.blogspot.com/


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